Tabagismo em tempos de pandemia

Fernando Teixeira
5 min readAug 28, 2020

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A autoficção é um recurso inesgotável por conta de sua capacidade de iludir o leitor. Cria-se empatia quando a pessoa se sente cúmplice do destino do autor, em que palavras e ações convergem para um foco central único. Há algo de universal no individualismo da experiência humana, um mínimo denominador comum que abrange a todos nós: estamos todos oscilando constantemente na frequência da música do universo, às vezes nas depressões de um grave, às vezes no auge de um tom agudo. Somos todos sinfonias inacabadas.

Dotado desse saber e de algumas rápidas, sucessivas e no geral inconsequentes desilusões amorosas de quarentena — impossível, afinal, sustentar um flerte digno quando não se sabe sequer quando poderemos sair de casa de novo, me peguei pensando enquanto acendia um cigarro que todos os meus personagens, por mais distintos de mim que tente fazê-los parecer, sempre acendem cigarros em momentos diversos.

Minha vida pode ser medida em guimbas. Os anos parecem cada vez mais sucessão de um único, inevitável, cíclcio, como o monólogo de Molly em Ulysses, mas os cigarros e os porres que tomei tornam-se mais memoráveis — marcos indeléveis e menos dolorosos que os vários prospectos de emprego fracasados, namoros terminados, noites insones e dias comendo, por falta de outra coisa, arroz com ovo durante os períodos sem dinheiro.

Há o cigarros da ansiedade, aquele que se fuma quando algo de importante está para acontecer, e o cigarro do alívo, que se fuma quando este algo já aconteceu. Há o cigarro do conforto, como os que eu acendia, por exemplo, nas noites quentes em que, entre os entressonos da minha mãe, que, de resto, passava a maior parte do tempo gemendo de dor em uma cama de hospital. Seus cochilos significavam uma pausa, em que descia a rampa do prédio envelhecido, mas asséptico, como um bom hospital público deve ser, e ia fumar, às vezes jogando conversa fora, tão inconsequentes como meus flertes de quarentena, com o segurança da madrugada.

Há, claro, os cigarros comemorativos, frequentemente de palha e partilhado por uma ou mais bocas numa mesa de bar, prática que acredito extinta de ora em diante: fumar, agora, é um exercício ainda mais prenhe de significados ocultos: uma co-morbidade optativa em tempos de pandemia, uma autoimposição. De fato, o número de ex-tabagistas vêm aumentando, mas sem dúvida há aqueles que, como eu, talvez por conta da ansiedade, de uma melancolia prevalente, foram na direção oposta e redobraram o consumo. É, agora, uma prática ainda mais solitária, mais contemplativa e mais misantropa do que nunca.

Já saí de lugares incômodos, pizzarias bem-iluminadas, cercado por semi-conhecidos, para encontrar refúgio nas calçadas da vida, usando o tabagismo como desculpa. Agora, impossibilitado de sair de casa, o cigarro é menos um motivo do que uma consequência. Fumo para matar as horas, as minhas e as do isolamento social. Encurtar, se possível, o tempo, quando na verdade gostaria de encurtar mesmo é a distância.

Entre mim e a normalidade, entre mim e meus amigos e a minha carreira e a minha vida funcional. Penso, que se usasse as guimbas e os porres para medir outras coisas, como profundidades marinhas, teria em mim um oceano de cerveja com guimbas descendo até as profundezas abissais, alcançando a zona Hadal.

Lá habitam criaturas submarinas, cegas pela ausência de luz, embriagadas e alimentando-se de partículas de tabaco, sobrevivendo exclusivamente dos meus impulsos autodestrutivos e saboreando, talvez por desconhecerem outra coisa que não a mais profunda treva, cada segundo de suas vidas.

De vez em quando, submerso na zona Hadal, vestindo meu escafandro, desço e me deparo com um desses seres; às vezes, sem meu consentimento, eles rapidamente evoluem e tateiam a superfície, sistema límbico recém adquirido, partes locomotoras ainda em desenvolvimento, cigarros dependurados nos lábios primitivos. Embriagam-se, desta vez com a luz— todas essas criaturas me contam histórias que já ouvi em madrugadas insones e em mesas de bar e em desconfortáveis poltronas de hospital e em subempregos — e eu as conduzo a um novo hábitat, o das palavras, modificando fatos, nomes e misturando um pouco as coisas para que, quando sua evolução elas estiver completa, nenhuma delas resolva me processar por expô-las assim.

Desta vez, nisto que estou chamando, por falta de palavra melhor, de crônica, emergi eu mesmo, um duplo, um döppelganger que me diz que apesar de guimbas de cigarro serem a maior quantidade de objetos tóxicos lançados ao mar, nenhuma delas é minha. “Faz pelo menos quinze anos desde que você foi a praia”, meu duplo me lembra. “Na época você nem sequer fumava”.

Tampouco fumava em 2017 e em meados de 2018, período em que minha pele rejuvenesceu e senti de mim um orgulho ferrenho. A vida estava boa. Autoestima elevada, achava-me capaz de encantar o mundo, ou parte dele, com minha performance de cidadão exemplar, impoluto e impoluente. Mas talvez , olhando em retrospecto, fosse outro duplo, outro döppelganger, que já não escrevia mais textos, preocupado que estava em ser o mais resolutamente feliz possível.

Assim como um dos meus personagens, talvez jamais tenha sido uma versão completa: outra criatura abissal que ganhou a superfície. Um emaranhado de histórias entreouvidas entre cigarros em mesas de bar. Difícil saber qual parte de mim não foi inventada a esta altura dos acontecimentos.

De todo modo, quando tudo tiver passado, quando eu puder, com prazer, desobrigar-me de ouvir as trivialidades ditas aos brado em um pizzaria usando o cigarro como desculpa, estarei parado, esfumaçado, na calçada. E então talvez meu duplo, como no conto de Borges, ou algum personagem rebelde, como na peça de Pirandello, venha até mim exigir direitos autorais ou cobrar-me pelo uso de suas histórias de vida. E os reconhecerei pelo fedor de cigarro e pelos assobios que me remetem a uma música familiar — e porque nenhum deles existe de verdade.

Este texto mesmo, escrito por um eu mais sedutor talvez entre no achaque — de toda forma, acho bom algum de mim começar a procurar um advogado.

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