Domingo, ou Todos os Belos Cachorros
Um café, penso antes de sair de casa. Faz um calor enlouquecedor e o ar morno recende à merda rançosa de cachorro. Caminho procurando nos olhos de estranhos algum sinal de reconhecimento: estamos todos, afinal, igualmente condenados a carregar nossas carcaças ressequidas por estas ruas pestilentas em meio à canícula. Nenhum nem nada, evitam me encarar.
Peço o café sem abrir a boca. Está ainda mais quente dentro da padaria, então me apresso, gesticulo por cigarros e saio.
Logo me vejo aboletado num banco de jardim. Filme a céu aberto. Aguardo e observo o público. Gente jovem, estudantes como eu. Rostos familiares surgem de relance no meio da pequena aglomeração que se formou em torno da máquina de pipoca. Mas eles, ou a maioria deles, também finge não me reconhecer.
Não posso culpá-los
Tão logo as pessoas começam a se ajeitar no gramado, perco o interesse. No caminho de volta, reparo na alarmante quantidade de cães, cativos ou vadios, e entrevejo um futuro distante em que eles erram em bando pela cidade, emancipados após a queda da civilização, em viciosas matilhas percorrendo ruínas à caça de tudo que se move, insubmissos e livres.
Refletir sobre os benefícios práticos da derrocada da humanidade não é o tipo de pensamento apropriado para um domingo, porém, e logo o afasto. Prefiro guardá-lo para a próxima vez em que tiver que enfrentar na fila do banco, uma das raras ocasiões em que esse tipo de desejo genocida é socialmente aceitável.
Em casa. Me dirijo à varanda e acendo um cigarro.